Diário de uma Paixão

quinta-feira, agosto 26, 2010

NAE

O NAE morreu.
Quando entrei para o NAE eram meia dúzia de gatos pingados a lutar pelo melhor lugar de costas para a janela e de frente para a acção.Tiravamos fotografias no meio das secretárias e cantavamos musicas no espaço curto entre uma outra chamada,mandavamos clientes para lados obscuros quando não nos ouviam,ganhavamos mal,mas o suficiente para me tirar de casa dos pais e me pagar a mobília barata do quarto e da casa partilhada.Pagou-me os meus all star preferidos e os melhores concertos a que fui,pagou-me muita viagem para o centro do mundo,Lisboa.
O NAE engordou de tal forma que nem 80 pessoas eram suficientes para fazer face ao volume de trabalho,criou-me expectativas,planos,deixou-me morar sozinha e arranjar um gato,deixou-me ter orgulho de mim mesma,por muito insignificante que fosse.
A centena de pessoas tornou-se um excesso,o trabalho uma fome que passou de temporária a efectiva,e tal como dezenas entraram,dezenas saíram,umas para melhor outras nem tanto.Vi gente abandonar o barco e regressar,não era tão mau depois de ver o mundo real.
Ensinou-me a falar com as pessoas,aliás,falar não,comunicar.
Há mais de um ano que se antecede o fim,doença prolongada provada por outrem.Deixou-me,deixei o barco definitivamente há quase um ano com a consciência que não voltava.
As ultimas 2 dezenas de pessoas foram informadas hoje,já com o meu conhecimento,que iam ser distribuídas por outros cais.
Eu sorrio à ironia do mau profissionalismo que causou a sua morte,ao sarcasmo das queixas sem fundamento,e ao futuro que espera aqueles que inocentemente acham que era o pior local de trabalho do mundo.
Hoje o NAE morreu e eu não sou cúmplice.

Adeus, Núcleo de Atendimento Especializado.

terça-feira, agosto 24, 2010

Torre de controlo

É engraçado como é interessante a depressão e o bem-estar tão vazio.
Há sempre algo a dizer quando tudo é negro,e quando o tempo está cinzento e o caos pacifica por instantes o silêncio toma posse de tudo.
É interessante como a depressão é um vicio,porque sem ela não há o que pensar a não ser a falta de alguma coisa.Algo que foi embora.
A busca de algo que perdemos mas que no fundo sabemos voltar a qualquer momento,como nos sonhos.Aqueles vulgares sonhos em que sabemos que sonhamos mas essa consciência não nos permite ficar neles para sempre,seria demasiado perfeito poder andar nu na rua.Existe sempre a necessidade de provocar a alvorada,levantar da cama,tomar banho,vestir uma roupa adequada ao dia em questão,e regressar.
É triste saber que a depressão funciona da mesma forma,sabemos de onde vem,tal como o sonho vem do subconsciente,e mesmo assim,sabendo de onde vem,para onde vai e como mata-la,continuamos submersos ao regresso dela.
Gostamos dos sonhos porque temos controlo sobre eles,podemos escolher acordar.O Freddy Krueger é apenas uma personagem,o Xanax é uma bolinha pequenina branca bem palpável.

domingo, agosto 15, 2010

Cidade dos sonhos

Acordas perdido,não sabes onde estás.As janelas de madeira desgastadas pelo tempo e pela poluição não deixam o silêncio fundir-se com o sono da madrugada semanal.Ninguém diria que é Sábado.
Lá em baixo um homem grita qualquer coisa em chinês ou japonês,a mim parece-me igual,se fosse indiano seria muito mais fácil de distinguir,mas não.Grita ao telemóvel como se a sua vida dependesse do volume daquela conversa agitada,enquanto mistura ao barulho os passos apressados de uns sapatos baratos que provavelmente foram manufacturados por um miúdo chinês,ou japonês,não importa.Um Fiat Punto passa a grande velocidade por ele com um casal de brasileiros dentro acompanhados de um português enquanto cantam uma musica comercial que provavelmente já passou milhares de vezes na Mtv ou na rádio.O camião do lixo junta-se à festa e de repente estás de pé,ouves gritos em chinês e perguntas a ti próprio se estarás acordado.Será um pesadelo daqueles em que estás nu na rua e não consegues acordar?Será daqueles em que acordas numa cidade onde toda a gente fala uma língua desconhecida e a bengala do inglês é sânscrito?No pior dos pesadelos acordas numa cidade completamente despido e não consegues esconder-te porque tudo é público,queres comprar uma camisola para te guardares da multidão mas não tens carteira,queres pedir auxilio,e ninguém te percebe.Um dia todos teremos de aprender chinês.
Estás acordado.O gato mia e o teu braço está dormente da posição na qual estavas a dormir com a coluna torta e a barriga para baixo,queres ir à casa de banho,tens marcas de lençóis nas mãos,tens a garganta seca.Não seca ao ponto de doer,mas seca ao ponto de saberes que estás acordado.
Acordas na cidade dos sonhos.

sexta-feira, agosto 13, 2010

Cérebro abortado

Queria um vestido preto e umas sandálias cor-de-rosa.Queria uma bolha protectora.
Queria que me ouvissem.Só me ouvem se morrer,só o detergente não chega.
O preto é uma cor triste,eu gosto de ser triste.A depressão é um vicio,um poço.
Não consigo subir a cair num poço sem fundo.Queria conseguir falar,estou farta de ouvir.A vodka alojou-se no meu cérebro.Há alguém no topo à espera do barulho.O barulho de fundo fica bem com o vestido preto.Os vestidos são um milagre.As sandálias são um oásis.As bolhas são flocos de neve a explodir no ar.As ressacas são para os fortes.A minha imaginação mata-me.Queria um colar prateado e um anel.O sonho é um aborto sugado ao mundo.
Não sou especial,não tenho um anel.Não sou especial.Não sou um floco de neve.Não sou o poço.Não sou o cor-de-rosa das sandálias.Viver é uma saída à noite.Nunca vi um oásis.Nunca vi o mundo.Não tenho medo de agulhas.Não sou as memórias nem as subidas.A minha vida não é um gráfico.

sexta-feira, agosto 06, 2010

08:05

A Alice ouviu o despertador hoje de manhã e não se levantou.Ficou a ouvir o ruído sonante e agudo da campainha,a pensar:
--- Se me levantei todos os dias até agora,por que me hei de levantar eu hoje?
Toda a gente tem direito a errar,toda a gente chora e toda a gente magoa toda a gente,porque é que ela não tinha esse direito?Não era mais nem menos que ninguém!
O trrim trrim do alarme calou-se por fim,e Alice com a cabeça enterrada na almofada abriu os olhos e não mais fechou.Dormia acordada,ou não dormia,quem sabe...
--- O gato foi embora,os livros que li chegam-me,a musica que ouvi é suficiente.
O sono eterno estava mesmo mesmo ali ao lado,quase à mesma distância das cortinas que escondiam dela o dia.
Alice esticou a mão,deixou-a pendurada fora da cama,e tão fluída como a sua mão,uma lágrima escorreu do seu olho.
A beleza portuguesa não se iguala à americana,não se dá valor a um saco que voa,quanto mais a uma lágrima a cair sem expressão.
A noite caiu sobre a alma da miúda.Não queria o regresso do bichinho,nem um vestido novo,queria alguma coisa,um despertador novo talvez.Quem sabe?
Devia ser tudo tão mais simples que o céu azul...

Um numero não é só um numero,nada é só nada só por ser.

terça-feira, agosto 03, 2010

Veneno social

Quando alguém recebe um telefonema daqueles telemarketingues do mais vulgar que existe,o que é que faz?Normalmente diz que está ocupado,para lhe ligarem noutra altura,alguns fingem até ser a empregada para não ter a responsabilidade de dizer sim ou não a um produto de provável futilidade.A percentagem menor consiste nas pessoas que educadamente respondem "sim,é o próprio" e recusam amavelmente a oferta apresentada ou após uma explicação honesta/pouco honesta do serviço,se mostram interessadas em aderir.99% destas pessoas contactadas,não pensam que do outro lado de lá da linha está uma pessoa a fazer o seu trabalho,e que provavelmente a vai atender numa ou outra altura em que queira fazer uma chamada urgente e não consiga.Uma espécie de "Colisão",tal e qual como no filme.Cabe a uma das partes ter a integridade de distinguir a má educação e pouca simpatia do outro,e evitar a bola de neve que se cria no mundo empresarial.
Um assistente de telemarketing actualmente,é em 90% dos casos,um licenciado em algum curso no qual não obteve sucesso,ou um futuro licenciado que atenderá o cliente menos simpático num consultório médico,num escritório de advogados,numa sala de aula,ou simplesmente no restaurante mais próximo.Quais as probabilidades de tal acontecer?Não existe nenhum estudo especifico para haver uma resposta,mas eu acredito por experiência própria que são elevadas.
Muito elevadas.
É caso para se dizer que devemos corrigir a nossa educação no que conta às pessoas que nos rodeiam,portugueses ou não,a globalização tornou as nossas empregadas domésticas,que vão a nossa casa limpar as casas de banho que nós não gostamos de limpar,as enfermeiras que podem vir a dar vacinas aos nossos filhos no centro de saúde.
A maior prova de respeito pelo próximo que podemos dar,é tratar os outros com os modos que gostaríamos que nos tratassem,mesmo quando esse próximo é uma criatura intragável.
A maior prova de respeito que podemos dar a nós próprios,é sermos superiores ao veneno social.
Se precisamos de gostar de toda a gente?Não,mas a educação devia ser mais importante que o gosto.