Diário de uma Paixão

quinta-feira, janeiro 19, 2017

Estou?

Nunca gostei do som do telefone. Quando apareceu o telemóvel eu sempre pensei nas consequências que ia ter dessa invenção. Acessível a toda a gente. 24 horas funcional. Eu não gosto de toques. Desde que aprendi a falar que me obrigaram a fazer chamadas, agora que penso nisso, é simplesmente irónico. Eu, a uma semana de 30 anos de vida, uma call-girl. Odiava o fio do telefone quando tinha 5 anos e tinha de agradecer os presentes envenenados da minha família abastada, não me podia mexer. Ficava ali com a franjinha a abanar à espera que o silêncio atordoasse a repetição de palavras a ouvir "estou?". Como se tivesse hipótese. O móvel bar onde estava o telefone ainda hoje me dá uma volta ao estômago. E os fios encaracolados dos telefones antigos. A solução, sempre que eu queria alguma coisa era simples. "Cátinha, liga ao avô". "Avô, quero um cão", "avô, quero uns ténis", "avô, quero ir à disneyland". A parte da disneyland não veio a tempo, já não havia saldo. "Cátinha liga ao avô a dizer que queres ir passar lá o fim-de-semana." Ainda hoje sinto uma irritação com a senhora que faz limpezas no meu trabalho. O fio do meu head-set está constantemente todo enrolado, como os telefones antigos. Às vezes até parece que acordo todos os dias de manhã e apanho o metro para ir agradecer alguma coisa. A minha vida são os telefones. Ligados, desligados, voicemails, chamadas em espera... Aquele "tu tu tu tu" todo o dia, que se repete à noite na minha cabeça como um eco. Continuei sempre presa àquele fio enroladinho do telefone mesmo sempre me aperceber. Não sei se algum dia me vou livrar dele. Pela experiência que tenho provavelmente um dia acordo com alzheimer e vou andar sempre agarrada a um telefone imaginário, a ligar ao avô a pedir cãezinhos. Ouço tantas vezes "estou?" "estou sim?" que mais dia menos dia vou responder. E eu? Estou?