O precipício
Os meus sonhos sempre foram como um segundo mundo, uma segunda oportunidade. Uma cidade alternativa, parecida com as que eu já conheço mas diferentes. Os prédios tinham coisas diferentes lá dentro, as lojas eram outras, as praias não tinham areia. Eram a minha segunda oportunidade para acordar. Eu nunca tive vontade de acordar. Desde pequena que me lembro de ficar sempre um bocadinho na cama a pensar em ficar, nunca em ir. Uma pessoa ganha uma rotina, um hábito de forçar o levantar, de moldar a vontade em fazer o que tem de ser feito, ou pelo menos o que é suposto ser feito. E eu ganhei esse hábito, mas há dias e não tão poucos como eu gostaria, em que o hábito se torna um sacrifício. Um enjoo matinal que se repete e se engole, uma dor física que se suporta à espera que um anti-inflamatório faça efeito. Depois há aqueles dias em mais vale não se dormir, mais vale ficar acordado porque de manhã é tudo mais escuro. As minhas manhãs sempre me cheiraram a mofo. Os meus sonhos foram aparecendo cada vez menos. Os quartos transfigurados são uma realidade. Aquela esperança em que pudesse ter o poder de escolha foi-se, acho que é de ser adulta. É tudo mais fácil quando há tempo para tudo e pensamos que daqui a uns anos vai ser tudo melhor, o euromilhões vai aparecer, a desgraça vai passar do prazo...
O gato deixou-me sozinha na estrada, meteu-se num buraco e eu nunca mais o vi. Penso muitas vezes no precipício, mais do que gostaria. Esqueço-me de me lembrar que um dia pode ser que tudo acabe num final feliz, mas lembro-me tantas que podia ser tão mais fácil cair.